Uma cena + A Tentativa da Escrita (2004)

Uma cena + A Tentativa da Escrita

(escrito no meio de um trabalho de Ecologia de Invertebrados Marinhos)

Uma menina dorme no ônibus.
Em pé, nos altos e baixos de Porto Alegre, seguro-me nos bancos e na lembrança do sorriso que com o tempo se torna cada vez mais apaixonante. Não chega o ônibus a estar cheio, ainda mais diante do quão repleta estou do amor de quem faz meus dias tão belos.
No banco em que me apoio e sob meus olhos, a menina dorme. A cabeça aconchegada em um casaco, o casaco entre a cabeça e a janela. Cabelo bagunçado de quem não se preocupa ainda com a beleza para os outros, e o sono solto. O balançar da cabeça mimetiza o movimento deste que nos leva. Bem vestida, bem corada nos seus dez anos, imagino; e dorme. Uma criança, enfim, como não se vê mais em todos os de pouca idade, nesses nossos dias de apelo e abandono (oh céus, que clichê!).
O detalhe que só depois me é apreendido pela razão: a menina tem uma das pernas sobre as pernas da senhora que senta ao seu lado. E esse detalhe é o que explica os meus olhos tão atentos àquele sono... aquela perna sobre pernas é casa, é lar seguro como nunca um ônibus poderia ser.

* * *

Escrever deve ser leve... ou não? Na esperança de que não deve, ou de que pode não o ser, escrevo. Pois escrever pra mim constitui-se em tarefa árdua de lapidação e busca infinitas, isso para não citar as desventuras e desesperanças que em geral me tomam conta de imediato à tomada da caneta – ou, deixando de lado o romantismo, do teclado. A obviedade das minhas metáforas me faz arrancá-las do texto, e, em arrancando-as, ele resta nu, de objetividade que não me dispõe ao juízo de valor por puro desmerecimento.
Difícil ainda mais me é a história inventada... meu substrato é o vivo, no laboratório, nas minhas reminiscências ou nas lembranças mais presentes, no que sinto e escrevo; construo sobre a vida que a existência implica.
E, imaginem, já me ocorreu de estar em um livro. Uma situação tão literária que só poderia estar sendo lida, jamais vivida. Perfeita, enfim; fácil. Lá estava tudo escrito ao meu redor, até mesmo minhas sensações... mas até entendo o meu fracasso em escrever sobre o que se passou naquela tarde. Já estava tão perfeitamente impresso em algum lugar perdido que nenhuma reedição seria exata.
E por isso cá estou de novo, em meio às palavras que tanto amo, e à minha dificuldade de fazê-las bailar no monitor como fazem enquanto tento me concentrar no trabalho de ecologia. Minha vitória é a não-desistência...

* * *

Meus olhos seguem a cabeça que balança ao sabor das irregularidades do asfalto. Olho para a senhora ao lado da cabeça; pernas sob a perna, uma nova face à cena: cabelos loiros mal disfarçam o branco dos queratinócitos já faltantes, algumas rugas, e olhos plácidos. Alguns reveses, talvez, nas feições sérias. Mãos cruzadas sobre a bolsa no colo, no colo também a perna que une as duas figuras, e por onde meus olhos voltam à menina. Calculo, em meio à beleza de tal unidade, a provável idade de ambas, mas não consigo precisar se a senhora é uma mãe tardia ou avó precoce.
Eis então que um breve olhar determina que tal precisão não importa. Ou que não há dúvidas.
A senhora olha pra cima – para mim – num resto de segundo, sorri brevemente o sorriso das pessoas de lábios finos, e torna a olhar para a frente. Não represento risco, apesar de insistentemente ter meus olhos na criança sobre suas pernas, sob sua tutela. A senhora passa uma das mãos da bolsa à menina, que não a percebe – ou percebe de alguma forma, e por isso mesmo dorme assim.
E entendo mais uma vez um dos apelos da maternidade. Proteger é doce, é forte.

* * *

Que fome é esta pelas coisas desnecessárias? Ou pelo menos, desnecessárias para a subsistência? Exatamente a fome pela vida que urge em meio ao rebanho expectador de televisão, expectador pela falta de expectativa melhor, ou própria.
Por que esta vontade de escrever, se meu sistema nervoso autônomo cuidará igualmente de respirar por mim, ainda que eu não escreva? As palavras doem. Seus sentidos doem. Sentir demais arde, e não quero arriscar o automatismo dos meus sistemas vitais só para manter o paliativo – a escrita – inativo.
A cura está aqui dentro, mesmo.

* * *


Destinos tantos nos tantos ônibus que pego! Desta vez, chego ao meu muito rápido. Antes de descer, última olhada na menina: agora, as suas duas pernas descansam sobre as pernas da senhora. Certa do seu destino, ou despreocupada dele; confiando como confia quem pode dormir assim, abandonadamente.

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