Uma cena + A Tentativa da Escrita
(escrito
no meio de um trabalho de Ecologia de Invertebrados Marinhos)
Uma
menina dorme no ônibus.
Em pé,
nos altos e baixos de Porto Alegre, seguro-me nos bancos e na
lembrança do sorriso que com o tempo se torna cada vez mais
apaixonante. Não chega o ônibus a estar cheio, ainda mais diante do
quão repleta estou do amor de quem faz meus dias tão belos.
No banco em que me
apoio e sob meus olhos, a menina dorme. A cabeça aconchegada em um
casaco, o casaco entre a cabeça e a janela. Cabelo bagunçado de
quem não se preocupa ainda com a beleza para os outros, e o sono
solto. O balançar da cabeça mimetiza o movimento deste que nos
leva. Bem vestida, bem corada nos seus dez anos, imagino; e dorme.
Uma criança, enfim, como não se vê mais em todos os de pouca
idade, nesses nossos dias de apelo e abandono (oh céus, que
clichê!).
O
detalhe que só depois me é apreendido pela razão: a menina tem uma
das pernas sobre as pernas da senhora que senta ao seu lado. E esse
detalhe é o que explica os meus olhos tão atentos àquele sono...
aquela perna sobre pernas é casa, é lar seguro como nunca um ônibus
poderia ser.
* * *
Escrever
deve ser leve... ou não? Na esperança de que não deve, ou de que
pode não o ser, escrevo. Pois escrever pra mim constitui-se em
tarefa árdua de lapidação e busca infinitas, isso para não citar
as desventuras e desesperanças que em geral me tomam conta de
imediato à tomada da caneta – ou, deixando de lado o romantismo,
do teclado. A obviedade das minhas metáforas me faz arrancá-las do
texto, e, em arrancando-as, ele resta nu, de objetividade que não me
dispõe ao juízo de valor por puro desmerecimento.
Difícil
ainda mais me é a história inventada... meu substrato é o vivo, no
laboratório, nas minhas reminiscências ou nas lembranças mais
presentes, no que sinto e escrevo; construo sobre a vida que a
existência implica.
E,
imaginem, já me ocorreu de estar em um livro. Uma situação tão
literária que só poderia estar sendo lida, jamais vivida. Perfeita,
enfim; fácil. Lá estava tudo escrito ao meu redor, até mesmo
minhas sensações... mas até entendo o meu fracasso em escrever
sobre o que se passou naquela tarde. Já estava tão perfeitamente
impresso em algum lugar perdido que nenhuma reedição seria exata.
E por isso cá estou de novo, em meio
às palavras que tanto amo, e à minha dificuldade de fazê-las
bailar no monitor como fazem enquanto tento me concentrar no trabalho
de ecologia. Minha vitória é a não-desistência...
* * *
Meus
olhos seguem a cabeça que balança ao sabor das irregularidades do
asfalto. Olho para a senhora ao lado da cabeça; pernas sob a perna,
uma nova face à cena: cabelos loiros mal disfarçam o branco dos
queratinócitos já faltantes, algumas rugas, e olhos plácidos.
Alguns reveses, talvez, nas feições sérias. Mãos cruzadas sobre a
bolsa no colo, no colo também a perna que une as duas figuras, e por
onde meus olhos voltam à menina. Calculo, em meio à beleza de tal
unidade, a provável idade de ambas, mas não consigo precisar se a
senhora é uma mãe tardia ou avó precoce.
Eis
então que um breve olhar determina que tal precisão não importa.
Ou que não há dúvidas.
A
senhora olha pra cima – para mim – num resto de segundo, sorri
brevemente o sorriso das pessoas de lábios finos, e torna a olhar
para a frente. Não represento risco, apesar de insistentemente ter
meus olhos na criança sobre suas pernas, sob sua tutela. A senhora
passa uma das mãos da bolsa à menina, que não a percebe – ou
percebe de alguma forma, e por isso mesmo dorme assim.
E
entendo mais uma vez um dos apelos da maternidade. Proteger é doce,
é forte.
* * *
Que
fome é esta pelas coisas desnecessárias? Ou pelo menos,
desnecessárias para a subsistência? Exatamente a fome pela vida que
urge em meio ao rebanho expectador de televisão, expectador pela
falta de expectativa melhor, ou própria.
Por
que esta vontade de escrever, se meu sistema nervoso autônomo
cuidará igualmente de respirar por mim, ainda que eu não escreva?
As palavras doem. Seus sentidos doem. Sentir demais arde, e não
quero arriscar o automatismo dos meus sistemas vitais só para manter
o paliativo – a escrita – inativo.
A cura
está aqui dentro, mesmo.
* * *
Destinos
tantos nos tantos ônibus que pego! Desta vez, chego ao meu muito
rápido. Antes de descer, última olhada na menina: agora, as suas
duas pernas descansam sobre as pernas da senhora. Certa do seu
destino, ou despreocupada dele; confiando como confia quem pode
dormir assim, abandonadamente.
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